Amamentando na sinagoga

Remexendo materiais antigos, há alguns meses, deparei-me com este lindo texto sobre amamentar na sinagoga, de autoria de Aurora Mendelsohn e publicado originalmente na revista norte-americana Lilith, uma revista judaica feminista que surgiu nos anos de 1970. O texto é de 2002 e foi traduzido por Karla Rahmann no ano seguinte para publicação na revista judaica paulistana Shalom, para a qual eu trabalhei.

Na época, Aurora Mendelsohn era PhD em psicologia cognitiva; morava em Silver Spring, Maryland, nos Estados Unidos; era casada; tinha uma filha; e era membro da Congregação Reconstrucionista Adat Shalom. Não consegui descobrir muito sobre o que a autora de “Amamentando na sinagoga” andou fazendo nos últimos anos. Parece-me que teve outros filhos e hoje mora no Canadá; sua ligação com a cultura judaica continua firme e forte.

Não sou judia, mas a experiência trabalhando para a revista Shalom transformou minha visão sobre minha própria cultura e me lançou nas raízes de nossas religiões cristãs de uma forma que só tenho a agradecer, pois ampliou meus horizontes. O texto de Mendelsohn, escrito há mais de dez anos, é de uma atualidade incrível e tem tudo a ver com muitas das questões que discutimos no mundo materno hoje em dia, como a amamentação em público, por exemplo. Nele, a autora mostra como, com um pouco de estudo, sensibilidade e capacidade de interpretação, a religião pode, sim, nos aproximar – e não afastar – de nossas convicções ideológicas. Por isso acredito que seja uma boa leitura para este Papo Materno. 

Fiquem com “Amamentando na sinagoga”, de Aurora Mendelsohn.

Érica Alvim

 

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Capa da revista Lilith do outono de 2002.

 

 Amamentando na sinagoga

Meu marido e eu tínhamos acabado de nos mudar para Maryland e estávamos indo para nossa nova sinagoga pela primeira vez com nossa filha de nove meses. Durante o serviço religioso, ela começou a ficar irrequieta: estava com fome e queria mamar. Nervosa, olhei ao redor sabendo que dar de mamar em público ofende um número considerável de pessoas.

Para alguns, é uma lembrança constrangedora de que seres humanos são animais; para outros, é uma exposição erótica inadequada. Nossa cultura enxerga os seios primeiramente como algo sexual, quando, na verdade, seu principal propósito é o de amamentar. Fiquei sentada, pensando nas minhas alternativas: sair do serviço religioso e amamentar minha filha do lado de fora ou ficar onde eu estava e possivelmente ofender alguém que eu ainda nem conhecia. Para mim, a oração é um compromisso sério. Por que eu teria que escolher entre dois atos sagrados?

Na sinagoga que costumávamos ir, meu minhag (costume) era o de levar o bebê para a entrada do santuário para amamentá-lo; dessa forma, podia continuar ouvindo o serviço religioso. Infelizmente, a sinagoga tinha separado um lugar na biblioteca para as mães amamentarem (que ficava lá em cima, depois de um corredor). Era só uma questão de tempo até que alguém criticasse o fato de eu amamentar num lugar mais público, durante a oração. No entanto, comecei a ver a amamentação como um ato sagrado, uma experiência espiritual transformadora que, na verdade, tinha sido responsável pelo fortalecimento do meu comprometimento com o judaísmo. Foi através dos atos personificados de dar à luz e mais particularmente de amamentar que eu vim a conhecer poderosamente o significado da palavra “sagrado”. Eu sabia que o judaísmo valoriza a modéstia, mas vê também o corpo como algo criado segundo a imagem de Deus e, por isso, santo. Cada vez mais, comecei a entender que o motivo pelo qual a amamentação mexia tanto comigo era o fato de ela ser uma poderosa metáfora do suprimento de Deus.

A verdade era que eu não conseguia mais me sentir à vontade teologicamente numa sinagoga onde não podia amamentar minha filha livremente, já que isso significaria excluir aquela parte de mim mesma que me levou a ver a santidade no mundo. E, para mim, ainda mais poderoso que isso, talvez era que a amamentação tinha me levado a enxergar a mim mesma intimamente como uma faceta dessa santidade no mundo.

Sentada em nossa nova sinagoga, pensando em tudo isso, deixei o medo da desaprovação das pessoas, abri minha blusa, e coloquei o bebê em meu seio. Ela logo dormiu, e meu marido e eu pudemos ficar e participar de todo o serviço religioso do Shabat. Na verdade, as palavras “participar de todo” não descrevem com precisão essa experiência. Segurar minha filha, amamentando-a com meu próprio corpo enquanto cantava os textos antigos sobre o poder criador e supridor de Deus, era uma oportunidade única de realmente personificar essas palavras sagradas.

A amamentação me impactou também de outras maneiras. Mesmo antes de me tornar responsável pelo corpo de outra pessoa, já estava comprometida com as várias vantagens da amamentação em contraste com a mamadeira. Segundo a Academia Americana de Pediatria, a amamentação oferece proteção de várias doenças, não apenas durante o tempo em que mãe e filho a estão vivendo, mas durante o resto de suas vidas. Vi também como a ligação emocional da mãe com o bebê se desenvolve naturalmente através do ato biológico de amamentar – por causa dos hormônios calmantes que são liberados tanto na mãe quanto no bebê, e pelo fato de a mãe não poder ficar muitas horas sem amamentar (ou tirar o leite para) a criança, e, portanto, não poder ficar longe dela por mais de um dia.

Como uma mulher feminista, eu estava experimentando a amamentação também como uma resposta ao monopólio conceitual do corpo da mulher por parte da nossa cultura, uma resposta ao fato de que muitos de nós nos vemos fisicamente segundo os ideais da sociedade de beleza feminina e de sexualidade, e, consequentemente, nos condenamos por estar longe desses ideais. Através da amamentação, comecei a me relacionar com meu corpo de outra maneira: como uma força poderosa e criadora. Quando uma amiga minha falou com muito orgulho sobre suas conquistas em relação ao filho de três anos – descrevendo como ela própria tinha feito com que ele crescesse através de elementos de seu próprio corpo, primeiro no útero e depois além dele – senti que ela descrevia exatamente minha própria experiência.

A amamentação fez também com que eu me sentisse responsável pelo mundo em que o bebê vive. Os produtos usam vários tipos de embalagens, que requerem combustível prejudicial ao meio ambiente para fabricação, transporte e aquecimento. O leite materno, por outro lado, é um dos poucos alimentos que chegam em nossas casas prontos para serem consumidos e sem qualquer embalagem. Saber que algo que faz parte de mim mesma é, como o maná, um produto alimentício ideal – fresco, completamente reciclável, sem necessidade de refrigeração, que dá vida e está disponível sempre que meu bebê precisar – poderia apenas aumentar minha preocupação com alimentos que fazem bem e nos sustentam.

Por estar acostumada com os desafios que o judaísmo clássico coloca diante das feministas, fiquei surpresa ao descobrir, no decorrer da minha pesquisa, quantas referências positivas e comoventes existem nas fontes judaicas tradicionais. Até pouco tempo atrás, a amamentação era, é claro, uma questão de vida ou morte: se você não pode amamentar, seu bebê passará fome, a não ser que você possa pagar uma ama de leite. Os seios são retratados na Torá, no Midrash e no Talmud como uma dádiva de Deus, um milagre, uma bênção, cujo propósito é preservar a vida.

No Talmud, por exemplo, a Ana bíblica, que era estéril, coloca o seguinte desafio diante de Deus: “Governador do Mundo, entre as coisas que criastes na mulheres, não houve uma que não tenha sido feita sem propósito: olhos para ver, ouvidos para ouvir, uma boca para falar, pernas para andar. Estes seios que colocaste em meu coração, não são eles para amamentação? Dê-me um filho, então, para que eu possa usá-los”. (Berakhot 31B)

Em referências bíblicas à amamentação, esse ato é entendido como uma continuação do processo de nascimento. Por exemplo, depois que Isaque nasce e uma Sara idosa expressa sua estupefação: “Quem diria que Abraão e Sara alimentariam um filho? Contudo, dei a Abraão um filho em sua velhice!”. E depois que ouvimos sobre o nascimento de Moisés, o texto passa um tempo descrevendo as atitudes tomadas pela filha do Faraó para conseguir uma ama de leite, que – por causa da chutzpá de Miriã – acaba sendo a própria mãe biolágica da criança.

Uma outra validação da amamentação surge com o profeta Oseias (9:14), que, numa exaltação retórica, invoca sobre a humanidade obstinada uma das piores maldições imagináveis: “Dê-lhes úteros que abortem!”, ele clama a Deus, “e seios secos!”.

A importância da amamentação para nossos ancestrais bíblicos é expressa também pelos diversos textos que falam do desmame. Segundo o midrash, Moisés é desmamado aos 2 anos (Êxodos Rabbah 1:31); o Talmud dá várias estimativas do período de amamentação, que variam dos 2 aos 5 anos (Ketubot 60 A); e os Apócrifos fazem referência aos 3 anos (II Macabeus 7:27). Cerimônias de desmame são ocasiões importantes. Abraão, em Gênesis 21:8, faz uma “grande festa” no dia em que Isaque foi desmamado e convida dignitários (Baba Metziah 87 A; Gênesis Rabbah 53: 9-10). Ana mostra o filho Samuel (que um dia conduzirá os israelitas como profeta e juiz) para os sacerdotes no dia em que é desmamado (I Samuel 1:21-24), levando com ela para Siló “um odre de vinho, um efa de farinha” e um touro. Desde então, cerimônias de desmame se desenrolaram com dois elementos: primeiro, gratidão a Deus pela criança não ter morrido na primeira infância (uma preocupação real até pouco tempo atrás); e segundo, um tipo de ritual que marcava o início da independência da criança.

No entanto, creio que ainda mais poderosa é a imagem bíblica de Deus não como “Rei” ou “Governador do Universo” ou “Senhor” (epítetos que suplantaram outras imagens femininas ameaçadoras da divindade), mas “Deus, a mãe que amamenta”. Nos escritos judaicos pós-bíblicos, esse Deus é suprimido; na Bíblia, faz várias aparições, mas ainda parece passar desapercebida pelos leitores.

Na visão escatológica de Isaías, os seios de Deus viram uma fonte infinita de consolo, e, realmente, um dos nomes bíblicos de Deus mais conhecidos, Shaddai, é linguisticamente derivado da raiz semítica e acadiana que significa “montanhas”, que evolui para significar “seios”. Segundo alguns estudiosos, esse “Deus de seios” se refere claramente a um aspecto de nosso antigo culto religioso abordado de modo diferente daquele que cada vez mais invoca o Deus que chamamos de “Yahweh”ou “Adonai” – nomes divinos que definiram o judaísmo clássico e patriarcal. A palavra judaica shad significa “seio”. “Shaddai” (o nome de Deus escrito nas mezuzot, no tefilim e em vários textos judaicos) evoca a imagem de Deus com seios ou de Deus amamentando, e pode ser traduzida literalmente não como “Senhor, nosso Deus” ou “Deus, minha Salvação”, mas como “Deus de Seios” ou “Deus que Amamenta”.

Isaías 66:10-13 me emociona com a imagem de Jerusalém e de Deus como A Mãe Terra que amamenta, e de nações prósperas como um leite materno para sempre abundante: “Regozijai-vos com Jerusalém, e alegrai-vos por ela, vós todos os que a amais; enchei-vos por ela de alegria, todos os que por ela pranteiam; para que mameis, e vos farteis dos seios das suas consolações; para que sugueis, e vos deleiteis com a abundância da sua glória. Porque assim diz o Senhor: ‘Eis que estenderei sobre ela a paz como um rio, e a glória dos gentios como um riacho que transborda; então mamareis, ao colo vos trarão, e sobre os joelhos vos afagarão. Como alguém a quem consola sua mãe, assim eu vos consolarei’”.

Por todo o livro de Gênesis, o nome Shaddai está ligado também às bênçãos da fertilidade. Por exemplo, quando Jacó abençoa seu filho José, ele diz: “Shaddai te abençoará com bênçãos dos altos céus, como bênçãos dos abismos que estão lá embaixo, com bênçãos dos seios e da madre”. (Gênesis 49:25)

A imagem de Deus como uma mãe que amamenta oferece às mulheres que estão amamentando uma imagem de nós mesmas como Deus, e uma compreensão da total dependência de nosso bebê como uma condição de toda a humanidade. Quando nós, como pais, sentimos a impotência e falta de capacidade de nossos recém-nascidos para exercer controle sobre suas circunstâncias, nos identificamos com o ponto de vista deles. Realmente, a fome, o frio, o desconforto e a ameaça de uma solidão infinita se instalam pelo menos até que A Toda-Poderosa apareça e instantaneamente ofereça comida e abrigo, calor e amor, e uma habilidade aparente de ler sua mente e descobrir suas mais profundas necessidades e desejos.

Quando meu marido não consegue consolar nossa filha, ele a passa para mim, e, brincando, me chama de “deus”. Realmente, a amamentação me ofereceu uma nova poderosa teologia. Para mim, é tanto divertido quanto aterrorizante ter um ser humano totalmente dependente de você. Minhas responsabilidades me fizeram experimentar um pouco do sagrado, do papel de Deus de consolar a humanidade, do que significa ser a pessoa que está controle, o axis mundi, o “objeto idealizado” – o adulto, a mãe.

Nossa experiência com o divino começa com a imagem que temos de nossos pais: diante de nossa aterrorizante impotência, eles parecem onipotentes, beneficentes e oniscientes. Como adultos, a imagem de Deus como nossa mãe que nos alimenta ainda ressoa do livro de orações de forma emocional, embora algumas pessoas se sintam intelectualmente incomodadas. A mãe que amamenta é o principal ícone dessa força supridora, que é a base sobre a qual construímos nosso conceito de Deus.

Essa imagem é relevante e evocativa de uma maneira que Deus o Rei, ou Deus o Guerreiro, ou Deus o Governador do Universo não é. Através dos meus seios – meus próprios shadayim – estabeleci uma ligação judaica profunda com Deus a Mãe que Amamenta, com o Deus que nos dá a paz como um rio de leite, que nos garante correntes transbordantes quando nossas vidas dependem disso, que nos carrega em Seu quadril, nos mantém vivos com Seus seios que nos amamentam. Como eu tento fazer pela minha filha.

As mães deveriam poder amamentar em qualquer sinagoga, e ser aplaudidas por fazerem algo que é uma herança religiosa, realmente, judaica. Textos religiosos que validam – e não suprimem – a imagem poderosa de Deus a mãe que amamenta, precisam ser divulgados para que a congregação possa começar a enxergar a amamentação como algo sagrado e milagroso. Gênesis Rabbah, 53:9, por exemplo, diz: “Nossa mãe Sara era extremamente modesta, por isso nosso pai Abraão teve de dizer a ela: ‘Não é tempo de modéstia. Para santificar o nome de Deus, descubra seu seio, para que todos possam conhecer os milagres que o Santo começou a fazer’. Sara descobriu o seio, e seus mamilos jorraram leite como jatos de água!”. As mães que estão amamentando entenderão a modéstia de Sara como sua; os pais terão precedentes religiosos para apoiar suas esposas: Abraão argumenta claramente nessa passagem que, na amamentação, a santidade e a ligação com o divino se sobrepõem à modéstia.

Precisamos recorrer a este aspecto da tradição judaica quando as barreiras contra a amamentação são levantadas, desafiar nossas sinagogas e conselhos e acolher as mães que estão amamentando. Que as nossas vozes sejam escutadas como judias que defendem o apoio completo às mulheres que amamentam, no local de trabalho e na sociedade como um todo. Afinal, as mães que amamentam no nosso meio manifestam a presença de Deus no nosso mundo.

 

MENDELSOHN, Aurora. Amamentando na sinagoga. Trad. Karla Rahmann. Com Shalom, São Paulo, 2003, v. 6, n. 261, p. 22-25.

Original em:

MENDELSOHN, Aurora. Nursing in Shul. Lilith, New York, Fall, 2002. Disponível em: http://www.lilith.org/shop/download/v27i03_Fall_2002-09.pdf. Acesso em: 2 dez. 2014.

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